22.2.14

A sabedoria num tubo de ensaio


Hoje, há poucos temas que tenham se tornado tão delicados quanto a moral. Salvo em circunstâncias especiais, admite-se que toquemos nesse assunto apenas indiretamente, raramente como o tema principal de livros ou conversas. E, caso realmente tragamos o assunto à tona, se for em forma de livro, recebe o rótulo de auto-ajuda e, se amigo numa roda de papo, a alcunha de moralista.

Mas, como dito acima, em algumas circunstâncias especiais, podemos tratá-la sem problemas. Dois campos têm essa permissão: as teorias sociais e as ciências. Tudo bem que as duas nem sempre levem a sério o que a outra diz, mas, tratando o assunto de forma mais geral, podemos dizer que essas duas áreas têm o respeito de muita gente – basta assistir ao noticiário para ver quantas vezes a tevê não chama esses profissionais para dar uma credibilidade extra a alguma afirmação. No campo das teorias sociais, a moral pode ser tratada, por exemplo, pelo marxismo, que explica que a ganância competitiva nas empresas é uma consequência do sistema capitalista; ou pela sociologia, que explica que as injustiças sofridas pelas mulheres são resultado da cultura patriarcal que ainda nos cerca. Já nas ciências, a abordagem é, como convém, um pouco mais concreta, com medições, exames de sangue e saliva. Elas explicam que a maior agressividade dos homens é causada pela testosterona e que traços como uma melancolia pessimista podem ser motivadas pela falta ou excesso de algum neurotransmissor.

Apesar do saudável debate ocorrendo nas ciências e teorias sociais, acredito que um tipo diferente de discussão moral não tem recebido a devida atenção de todos, a sabedoria. Sim, pois me parece que nem a sociologia nem a psicologia evolutiva ajudam tanto quanto gostaríamos na hora em que precisamos, digamos, saber como lidar com a morte de alguém próximo – mesmo que, talvez, sejam as únicas ferramentas necessárias a alguns Quincas Borbas e Sheldons Coopers. Vejo isso o tempo todo, as pessoas podem ter lido numa revista que o perdão faz bem ao corpo, mas praticá-lo com propriedade está infinitamente distante de conhecer seus benefícios à fisiologia. Quando devemos oferecer ajuda e quando devemos deixar que o outro cresça por si mesmo? Quando é desabafo e quando é fofoca? Quando devemos escolher a coragem combativa e quando a espera paciente? São questões, por exemplo, com que eu trombei em inúmeras conversas e que raramente vejo impressas ou discutidas seriamente. Mas talvez minha definição de sabedoria ainda esteja muito vaga. O que tenho em mente é algo como a retórica dos antigos, a sabedoria tão fora de moda praticada por gente como Quintiliano ou Sêneca. O que advogo é o direito de alguém escrever sobre moral, sem ser necessariamente teórico ou científico, talvez possamos ser apenas humanos falando sobre aquilo que temos de mais humano, nossa integridade.

Porém, alguém pode dizer que isso não é necessário, que o conhecimento mais acadêmico pode ajudar com todas as questões difíceis da vida sem o menor problema e, apesar do tom mais duro que eu usei um pouco antes, entendo esse posicionamente. No próprio exemplo acima, o da morte, poderíamos dizer que uma pessoa irreligiosa encontra conforto na ideia do materialismo, influenciada pelas descobertas da ciência, defendida por inúmeros pensadores das Humanidades e que diz que a morte do corpo é apenas o fim, somos apenas matéria, "imagine there's no heaven (...) no hell below us"¹, como sugere o John Lennon. Mesmo que ele encontre consolo real ali, ainda acho que há espaço para uma sabedoria não-teórica. Até porque o discurso de sabedoria que defendo aqui não seria apenas uma voz que discorda da ciência ou das teorias sociais, muitas vezes o sábio e o teórico podem concordar. Deixo o G. K. Chesterton, no seu estilo combativo habitual, explicar melhor o que eu quero dizer:
Perceber-se-á que a velha eloquência agora é evitada – não tanto porque era artificial quanto porque era real. A retórica não desagradava os homens porque o seu estilo era ornado, mas porque o seu sentimento era simples. Acontece que a retórica tem um modo atraente de colocar verdades muito claras ²
Chesterton coloca bem o problema. Os sábios da Antiguidade não diziam verdades inéditas, mas diziam-nas com um sentimento claro, pertinente àquele momento, quase como profetas, repetindo as velhas virtudes, denunciando os vícios do povo ou dos poderosos.

Mas sem conseguir encontrá-la no âmbito "sério", as pessoas procuram essa sabedoria simples da retórica clássica em outros lugares. Ela tem permissão, por exemplo, para estar na arte porque esta pode ser tomada como uma expressão de subjetividade, sem pretensão de verdade. Robert McKee diz que "Tradicionalmente a humanidade procurou a resposta para a pergunta de Aristóteles nas quatro sabedorias – filosofia, ciência, religião, arte – tirando luz de cada uma para montar um sentido de acordo com o qual possamos viver (...) [mas] à medida que nossa fé nas ideologias tradicionais diminui, voltamo-nos para a fonte em que ainda acreditamos: a arte da história.". ³

Mas procurar respostas na arte certamente não é a pior das consequências da marginalização da sabedoria. Um gênero preencheu essas lacunas mais que todos os outros: a auto-ajuda. Ali, os preconceitos que impedem que os conselhos morais cheguem aos círculos mais prestigiados não atuam, os autores de auto-ajuda não estão preocupados com sua reputação junto à elite intelectual. Ela funciona de acordo com a lógica do mercado, ela simplesmente anuncia um bem (a ajuda com algum problema) e as vantagens em adquiri-lo (a rapidez ou a eficácia com que o problema será solucionado). Não que eu ache que as leis de mercado sejam inerentemente ruins, elas vêm apenas sanar um problema que deveria ter sido tratado por algo mais competente, como um pai que terceiriza a educação dos filhos.

Por isso, quando alguém fala seriamente em moral pode ouvir que está só propagando auto-ajuda. Mas esse ainda não é o último rótulo possível. Outro muito comum e cuja resposta demoraria pelo menos outra postagem inteira para abordar é a acusação de intolerância. Alguém pode dizer que a moral é relativa e que dar conselhos morais com pretensão de verdade como faziam os antigos pode transformar-se, na melhor das hipóteses, em alienação e, no pior cenário, em uma forma de opressão. Eu discordo por inúmeras razões, mas para não me alongar, posso dizer apenas que não estou sozinho. Hoje, na Academia, não é tão comum quanto se pensa dizer que a moral está totalmente no âmbito da escolha pessoal, como vemos nesse trecho de um curso do professor Shapiro, da universidade de Yale. Cada vez menos acadêmicos acreditam no relativismo moral.

Portanto, se, na academia, voltou-se a acreditar que existem verdades morais e voltou-se a debater a respeito de quais seriam elas, esse tipo de conversa precisa chegar até as pessoas. A arte continua oferecendo-nos grande consolo e ensinamento, e a ciência dá-nos subsídios sólidos para algumas das discussões, mas ainda há lugar, na verdade necessidade, de um discurso claro que dê conselhos sábios sobre como lidar com as nossas dores e como responder à pergunta que Aristóteles fez na Ética: "como devemos viver?"

1 - "imagine que não há Céu (...) nenhum inferno abaixo de nós", traduzido do inglês.
2 - The Rhetoric of the Peacemongers, The Illustrated London News, 13 de outubro, 1917.
3 - Story, p. 11-12. Traduzido do inglês.

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