12.3.15

O apedrejamento do século XXI


Quando estou reunido com algum grupo de adultos, sempre lamento quando o assunto muda subitamente para o crime sórdido sobre o qual algum deles lia no jornal. As expressões de todos mudam: os rostos se contorcem, alguns lamentam o excesso de brandura das penas brasileiras e, às vezes, um mais ousado sugere punições com descrições meticulosas e brutais. A cena é comum.

Comum e antiga. Quando presencio os exemplos mais exaltados, com xingamentos e golpes de desabafo na mobília, fico com a impressão de que a única diferença entre aquele episódio e um apedrejamento são as pedras. O jornal sensacionalista é o apedrejamento do século XXI. Não é um fenômeno humano raro, podemos encontrar paralelos em quase todas as sociedades. Na Grécia Antiga, em tempos difíceis, de doença ou fome, os sacerdotes escolhiam um pária (chamado de pharmakós) para ser excluído da cidade¹. Na Idade Média, haviam decapitações em público e um tipo particular ficou famoso durante a Revolução Francesa, a guilhotina. A maioria dessas execuções era acompanhada por uma multidão que esbravejava contra os sentenciados.

Nos tempos modernos, quem cumpre essa função é principalmente o telejornal sensacionalista. Acredito que um dos motivos é uma espécie de gosto literário: os crimes escolhidos pela mídia e pela audiência se desenrolam como num romance policial, os telespectadores aguardam por novas pistas e evidências que incriminem o antagonista e vindiquem a vítima. Mas não acho que esse seja o maior motivo.

A causa principal me parece ser aquela que Contardo Calligaris expôs num artigo publicado na Folha há alguns anos.² Ele diz que o que faz as pessoas se envolverem nesse tipo de comportamento é a necessidade de se diferenciar: os alemães na Noite de Cristal queriam afirmar que não eram judeus, os racistas que linchavam negros nos Estados Unidos queriam reafirmar sua separação da população de ascendência africana, o povo da Oceania participava dos Dois Minutos de Ódio para assegurar-se de que não tinha sentimentos contrários ao Partido como aqueles declarados pelo rosto projetado na tela.

Porém, pode parecer inoportuno tratar de um tema desses num blog cristão, afinal, muitas dessas demonstrações de ódio foram promovidas por cristãos ao longo dos séculos – o arquidiácono do Corcunda de Notre-Dame vem à mente. Não acho que seja o caso. Primeiro porque tomar parte nessas práticas, não importa como a pessoa se auto-denomine, vai contra os próprios ensinamentos de Cristo. Jesus é um dos mais famosos opositores desse comportamento. Ele colocou a frase “quem nunca pecou que atire a primeira pedra” na língua popular. Além disso, foi veemente reformador de outra expressão comum em seu tempo, “olho por olho, dente por dente”. Ele dizia que se alguém nos batesse no rosto, devíamos oferecer-lhes o outro lado, não porque Jesus ignorava a justiça mas porque Ele enfatizava a humildade e a misericórdia. Sua doutrina ensina que se reconhecermos como nós mesmos somos ruins, tendemos a ver a falha alheia não com olhos de condenação mas de compaixão.³

Acredito que seja esse o principal defeito do sensacionalismo de casos policiais. G. K. Chesterton diz que uma das frases mais famosas de Thomas Carlyle era que os homens eram, na maior parte, tolos. Já ele fala que “o Cristianismo, com um realismo mais seguro e reverente, diz que todos são tolos”⁴. Não adianta insultar os vícios dos criminosos da tevê com impropérios analgésicos. Apontamos a falha dele para dizermos para nós mesmos que somos diferentes, que não falhamos. Acusamos para nos sentirmos absolvidos. Proponho um exercício diário diferente: ao invés de negar a nossa falibilidade, devemos aceitar essa verdade. Ao invés de desviarmos dos nossos defeitos todos os dias, devíamos corajosamente os reconhecer. C. S. Lewis diz que “se você procurar a verdade, pode encontrar consolo no fim: se procurar consolo você não terá nem a verdade nem o consolo – apenas bajulação e esperança vazia e, no fim, desespero.”






1: Entrada para pharmakos na Enciclopedia Britannica
2: Artigo de Contardo Calligaris para a Folha
3: Ver Mateus 18:21-35
4: Grifo meu.

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